1 E aconteceu, no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto do mês, que, estando eu no meio dos cativos, junto ao rio Quebar, se abriram os céus, e eu vi visões de Deus. 2 No quinto dia do mês (no quinto ano do cativeiro do rei Joaquim),
Duas datas são fornecidas – no quinto ano do cativeiro do rei Joaquim (i.e., 592 a.C.) e no trigésimo ano. O sentido dessa segunda data não fica claro.
O Rio Quebar era um tributário do grande Rio Eufrates que supria toda a Babilônia e era usado na irrigação agrícola.
Embora essa referência pudesse apenas afirmar a localização de Ezequiel na época de seu chamado, também é digno de nota que outros profetas receberam visões e revelações por intermédio de fontes de água doce (Elias, Eliseu, Daniel etc.), e, no Oriente Próximo antigo, a água com frequência representa a vida.
3 veio expressamente a palavra do Senhor a Ezequiel, filho de Buzi, o sacerdote, na terra dos caldeus, junto ao rio Quebar, e ali esteve sobre ele a mão do Senhor.
A frase veio expressamente a palavra do Senhor [uma frase usada cinquenta vezes no livro de Ezequiel, mais que em qualquer outro livro do AT] a Ezequiel comunica que Ezequiel recebera as palavras de Deus.
O teste de legitimidade para os ministérios dos profetas do AT era a precisão da mensagem entregue, porque as palavras do Senhor jamais podem estar erradas.
O livro garante repetidas vezes a seus leitores que Ezequiel pregava as palavras de Deus, e não as suas próprias.
A frase ali esteve sobre ele [Ezequiel] a mão do Senhor é repetida sempre que Ezequiel recebe visões e revelações (3.22; 8.1; 33.22; 37.1; 40.1).
4 Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do Norte, e uma grande nuvem, com um fogo a revolver-se, e um resplendor ao redor dela, e no meio uma coisa como de cor de âmbar, que saía dentre o fogo.
A – As visões de Ezequiel começam quando ele vê que um vento tempestuoso vinha do Norte, e Deus se manifesta nesse vento.
Havia uma crença comum no Oriente Próximo antigo de que o(s) deus(es) de uma nação conquistadora era(m) mais poderoso(s) que o(s) deus(es) da nação conquistada, de que a derrota militar humana era um paralelo da batalha espiritual/celestial.
Assim, talvez os judeus acreditassem que o(s) deus(es) havia(m) derrotado o Senhor. Claramente, o poder imenso dessa visão demonstrava que Yahweh não fora derrotado.
O fato de o vento tempestuoso vir do Norte pode ser uma referência ao monte Safom (heb., “norte”), o suposto lugar de moradia de Baal (também adotado pelos babilônios), e serve como uma afirmação do poder do Senhor sobre Baal.
O Senhor não é uma entidade localizada, limitado a Jerusalém ou as fronteiras geográficas de Israel. O Rei do universo vai e vem para onde quer que lhe aprouver.
B – Um vento tempestuoso (heb. ruach, “vento, folego, espírito” combinado com soar, “tempestade, temporal, redemoinho de vento”; cp. 13.11,13) refere-se literalmente a uma grande nuvem de tempestade com ventos, possivelmente um tornado, demonstrando a grande força e poder do Senhor.
A imagem “vento tempestuoso” também e associada com o “Espírito” (heb. ruach, 1.12) de Deus, que animou a visão, direcionando o movimento dos “animais” ou seres viventes e habitando as “rodas” (v. 12,20-21).
A imagem é similar a descrição da vinda do Espírito Santo em Pentecostes (At 2) e a linguagem de Jesus em sua conversa com Nicodemos (Jo 3).
5 – E, do meio dela, saía a semelhança de quatro animais; e esta era a sua aparência: tinham a semelhança de um homem. 6 – E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles, quatro asas. 7 – E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés, como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido. 8 – E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas. 9 – Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam; cada qual andava diante do seu rosto. 10 – E a semelhança do seu rosto era como o rosto de homem; e, à mão direita, todos os quatro tinham rosto de leão, e, à mão esquerda, todos os quatro tinham rosto de boi, e também rosto de águia, todos os quatro. 11 – E o seu rosto e as suas asas eram separados em cima; cada qual tinha duas asas juntas uma à outra, e duas cobriam os corpos deles.
Aqui, os detalhes têm a intenção de transmitir a impressão geral de Ezequiel da aparência com semelhança (heb. demut,”semelhança”, palavra usada nove vezes no cap. 1) da “gloria do Senhor” (1.28).
O uso concentrado dessas palavras no capítulo 1 (incluindo quatro ocorrências no v. 28) é surpreendente.
O uso repetido dessas palavras salienta o fato de que o profeta viu coisas tão completamente fora do comum que não tinha o vocabulário para compor uma descrição direta. Para transmitir o que ele viu era preciso apoiar-se muitíssimo na comparação.
O Espírito Santo, como o autor principal das Escrituras, permitiu que os personagens misteriosos dessa e de outras visões proféticas (cp. Dn 8.15-17,27) persistissem, em vez de prover uma explicação minuciosa a ponto de os homens equivocadamente acreditarem ser capazes de compreender completamente o Senhor e seus caminhos (cp. Is 55.8-9)
1.5-10 Essas quatro criaturas ou animais são descritos como tendo quatro rostos – de homem; [..] de leão, [..] de boi, e [.] de águia.
Os estudiosos discordam sobre o sentido ou relevância dos diferentes rostos. Alguns sugerem que o boi ou touro representa a fertilidade e/ou colheita, o leão significa a força, a águia representa a nobreza, e o homem incorpora a imagem de Deus.
Outros sugerem que a águia representa as criaturas do ar; o leão, as criaturas selvagens; o boi ou touro, as criaturas domesticadas; e o homem, o pináculo da criação. De qualquer forma, a pouca informação contida no texto torna difícil a interpretação.
12 – E cada qual andava diante do seu rosto; para onde o Espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam. 13 – E, quanto à semelhança dos animais, o seu parecer era como brasas de fogo ardentes, como uma aparência de tochas; o fogo corria por entre os animais, e o fogo resplandecia, e do fogo saíam relâmpagos. 14 – E os animais corriam e tornavam, à semelhança dos relâmpagos.
À luz do fato de que Judá encontrava-se no exilio, a imagem de fogo provavelmente indica o julgamento de Deus contra o pecado do povo, e sua santidade pura contrasta com a profanação deles.
15 – E vi os animais; e eis que havia uma roda na terra junto aos animais, para cada um dos seus quatro rostos. 16 – O aspecto das rodas e a obra delas eram como cor de turquesa; e as quatro tinham uma mesma semelhança; e o seu aspecto e a sua obra eram como se estivera uma roda no meio de outra roda. 17 – Andando elas, andavam pelos quatro lados deles; não se viravam quando andavam. 18 – Essas rodas eram tão altas, que metiam medo; e as quatro tinham as suas cambas cheias de olhos ao redor. 19 – E, andando os animais, andavam as rodas ao pé deles; e, elevando-se os animais da terra, elevavam-se também as rodas. 20 – Para onde o Espírito queria ir, iam; pois o Espírito os impelia; e as rodas se elevavam defronte deles, porque o Espírito da criatura vivente estava nas rodas. 21 – Andando eles, andavam elas, e, parando eles, paravam elas, e, elevando-se eles da terra, elevavam-se também as rodas defronte deles, porque o Espírito dos animais estava nas rodas.
Essa descrição estendida das rodas é intrigante. Esse retrato acrescenta vigor a simetria fascinante dessa imagem em um vento tempestuoso em constante movimento.
Além das quatro faces e quatro asas com rodas [..] tão altas, que metiam medo e cheias de olhos em redor. Essa imagem prenuncia a visão da sala do trono de Ap 4, em que os animais ou seres viventes tinham olhos “ao redor e por dentro” (Ap 4.8), em vez de rodas cobertas com olhos.
As rodas, impulsionadas pela energia de vida dos animais, fazem um movimento constante de forma que o trono-carro eleva-se e desce a vontade em qualquer direção.
22 – E, sobre a cabeça dos animais, havia uma semelhança de firmamentos, como um aspecto de cristal terrível, estendido por cima, sobre a sua cabeça. 23 – E, debaixo do firmamento, estavam as suas asas direitas, uma em direção à outra; cada um tinha duas, que lhe cobriam o corpo de uma banda; e cada um tinha outras duas, que o cobriam da outra banda. 24 – E, andando eles, ouvi o ruído das suas asas, como o ruído de muitas águas, como a voz do Onipotente, a voz de um estrondo, como o estrépito de um exército; parando eles, abaixavam as suas asas. 25 – E ouviu-se uma voz por cima do firmamento, que estava por cima da sua cabeça; parando eles, abaixavam as suas asas. 26 – E, por cima do firmamento, que estava por cima da sua cabeça, havia uma semelhança de trono como de uma safira; e, sobre a semelhança do trono, havia como que a semelhança de um homem, no alto, sobre ele. 27 – E vi como a cor de âmbar, como o aspecto do fogo pelo interior dele, desde a semelhança dos seus lombos e daí para cima; e, desde a semelhança dos seus lombos e daí para baixo, vi como a semelhança de fogo e um resplendor ao redor dele. 28 – Como o aspecto do arco que aparece na nuvem no dia da chuva, assim era o aspecto do resplendor em redor. Este era o aspecto da semelhança da glória do Senhor; e, vendo isso, caí sobre o meu rosto e ouvi a voz de quem falava.
1.22 Ezequiel descreve uns firmamentos (heb. Raqiya’ “martelado ou batido, como um prato de metal; estendido”) como algo como cristal frio, uma plataforma vítrea.
1.22-28 A visão de Ezequiel, basicamente, prepara o palco para todo seu ministério. Esse comissionamento prenuncia a mensagem que ele receberia para proclamar.
A imagem do Senhor como um rei-guerreiro conduzindo um carro inspirador de perplexidade e reverencia e com fogo e relâmpagos fala sobre o julgamento que já está sendo derramado sobre os judeus por causa de seu pecado.
Essa imagem também aponta para o julgamento futuro sobre as nações que buscam destruir o povo do Senhor e profanar a terra. Essa mesma imagem, não obstante, também é associada com a libertação dos judeus do jugo das nações (cp. Sl 18, em especial vv. 10,16-24).
O ministério de Ezequiel seria de julgamento sobre todos que negassem o Senhor, mas também seria de esperança para o povo de Deus, se retornassem ao Senhor.
1.26 A palavra hebraica traduzida por homem em Ez 1.5,8,26 é a palavra ‘adam, usada pela primeira vez na Escritura em Gn 1.26 – “E disse Deus: Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança”; o versículo 27, a seguir, esclarece que “E criou Deus o homem a sua imagem; […] macho e fêmea os criou”.
A palavra ‘adam, como termo de comparação em Ez 1 (e 10.8,14,21), refere-se ao conceito coletivo ou genérico de “homem”, incluindo implicitamente tanto homens quanto mulheres, que juntos, e não separadamente, constituem a humanidade.
Em português, o termo “humanidade” e “homem” nesse sentido, são sempre genéricos. No contexto das visões de Ezequiel, no entanto, o profeta não compara a aparência tanto dos animais ou criaturas quanto a de Deus, o Rei, a um ser humano indefinido, mas as características de um homem:
- Adam é traduzido por “homem” no versículo 10, talvez refletindo um paralelo com Ap 4.7, que traduz a palavra grega anthropos como ‘homem” porque é usada ali em referência a um indivíduo em particular, “o terceiro animal”. Anthropos, como ‘adam, também pode ser usado em um sentido genérico, inclusivo de gênero, mas, em geral, refere-se ao ser humano do sexo masculino e, quando usado em referência a indivíduos, jamais denota um ser humano do sexo feminino. Anthropos é usado para traduzir a palavra adam em toda a LXX, a primeira tradução de Ezequiel.
- O contexto imediato de Ez 1 não deixa a menor dúvida sobre que tipo de forma humana o profeta viu. No versículo 27, as duas ocorrências da palavra lombos (heb. motenoyim, “lombos, dorsos”) tem uma terminação possessiva para o masculino, denotando seus (de um homem) lombos. Os tradutores, em algumas versões, também puseram letra maiúscula em “seus” para indicar a compreensão de Ezequiel, observada no versículo 28, de que ele estava tendo uma visão de Deus, como Rei, o qual, a seguir, fala com o profeta.
- Adam aparece pelo menos 130 vezes em Ezequiel, com maior frequência que em qualquer outro livro do AT, com maior frequência (93 vezes) na frase “filho do homem”, a forma pela qual o Senhor se dirigiu ao profeta (e.g., 2.1,6).
1.27 O termo âmbar (heb. chashmal), na Escritura, ocorre apenas no livro de Ezequiel (1.4,27; 8.2). Ele pode se referir a um metal resplandecente ou a uma pedra preciosa.
O detalhe parece transmitir tanto a pureza quanto o grande valor do Senhor. Esse termo também contribui para o brilho e intensidade da visão da majestade de Deus.