Jornalismo em quadrinhos

Jornalismo em quadrinhos – conheça esse Gênero literário

O fotógrafo francês Didier Lefèvre viveu experiência única em julho de 1986, quando acompanhou uma caravana dos Médicos Sem Fronteiras pelo Afeganistão. Os guerrilheiros mujahidin (embrião do talibã) resistiam à invasão russa. Didier temia não chegar ao fim da jornada, um hospital em Feyzabad, no norte do país. “Numa missão humanitária, o primeiro a ser sacrificado é o fotógrafo”, imaginou. Mas nesse país inóspito de paisagens belas, encontrou um povo solidário e desconfiado, rude na ação e gentil no trato, que mantém a passada sem olhar de banda, mesmo na ausência de perspectivas.

Didier ficou tão fascinado que voltou ao lugar oito vezes. Colheu imagens impressionantes. Mas a experiência que viveu não coube em fotos. Por mais de uma vez, hesitou. O país em guerra assumiu ele mesmo uma presença uniforme, que parecia exceder o que a imagem conseguiria, de um só golpe, dar forma. Seria preciso contar os fatos fora do alcance da câmera: situações não registráveis, por segurança; costumes ditos ao acaso; cenas sem complemento visual; o sentido dos fatos.

Só em 2003 encontrou o devido meio para relatar o que viu. O Fotógrafo é uma reportagem em quadrinhos, que a Conrad traz ao Brasil em trilogia, feita por Didier, pelo desenhista Emmanuel Guibert e pelo diagramador Frédéric Lemercier. O primeiro volume saiu em novembro. O segundo, ainda neste semestre.

Na obra, desenhos e fotos são organizados numa narrativa exposta com tocante neutralidade, e é ilustrativa a passagem em que uma enfermeira conta a Didier a importância de realizar uma cirurgia fadada ao fracasso.

O livro retoma um gênero de realismo que tem sua escola até no Brasil – a do jornalismo em forma de HQ. Desde que tiras começaram a ser usadas pela imprensa americana no século 19, criando as bases da atual indústria dos gibis, as relações entre notícia e arte seqüencial não vivia tamanha interdependência.

Até hoje, é comum a imprensa usar quadrinhos como ferramenta a mais para a reconstituição de fatos e a veiculação de informação a que não se tem acesso direto. É assim com as dramatizações de casos policiais. Em alguns casos, o efeito é refinado. Foi assim com a edição em HQ da reportagem A Infiltrada, coordenada pelo diretor de arte Samuel Cabral, para o jornal Agora São Paulo, em 22 de abril 2007 (editoria Polícia, domingo, A-3). O ilustrador Luciano Veronezi seqüencia a apuração de Carla Monique Bigatto. Não há aqui as cenas esparsas das tirinhas de reconstituição. Quadro a quadro, é narrada a operação de uma policial de 21 anos que se disfarçou para desbaratar um esquema de tráfico internacional.

A vantagem do expediente foi a de manter incógnita a identidade da personagem central da história. E a de materializar um relato vivo. Os quadrinhos, no caso, não foram apêndice da notícia, mas a própria informação. É o que fez também a repórter Patrícia Villalba, que realizou a primeira entrevista brasileira em HQ, no jornal O Estado de S. Paulo (Caderno 2-Zap, D9), em 9 de abril de 1999.

Entrevista em história em quadrinhos (HQ)

Patrícia marcara encontro entre Tom Zé e Otto, representantes de duas gerações da MPB que fariam shows no dia seguinte. Foi acompanhada por Fábio Moon e Gabriel Bá, então já conhecidos pelo fanzine 10 Pãezinhos e responsáveis pela atual quadrinização de O Alienista, de Machado de Assis, editada pela Agir em 2007. As três horas de conversa viraram duas páginas de jornal de bem-humorada entrevista, em que Tom Zé surge na velha Brasília que usava nos anos 80 para dar carona ao colega em plena caatinga.

A opção por teatralizar o encontro num espaço lúdico evitou o enfileiramento de primeiros planos dos personagens, padrão numa entrevista exibida com perguntas e respostas. O efeito de real, no entanto, não se perde. Em 2002, as jornalistas Carolina Cassiano e Rachel Bonino, procuraram os escritórios de designers Fábrica de Quadrinhos e Expresso para reconstituir o massacre dos 111 presos do complexo prisional Carandiru ocorrido em 1992. Dez anos depois, Rachel entrevistara, para a revista Efemérides, que não chegou a circular, duas testemunhas com ângulos opostos sobre o ocorrido: um preso e um policial. Cada escritório sequenciou um dos relatos com um estilo diferente, criando um genuíno efeito de “espelho” entre as versões.

O gênero tem criado adeptos, como esses. A ponto de, em 2005, como informa Marko Adkik, diretor do site Neorama dos Quadrinhos, ter sido lançada a editora italiana BeccoGiallo (www.beccogiallo.it), só com HQs de investigação de grandes casos, como a catástrofe nuclear de Chernobyl e o sequestro do político italiano Aldo Moro, nos anos 70. Em 2005, a Associazione Culturale Mirada (www.mirada.it) lançou o Komikazen – Festival Internazionale del fumetto di realtà.

Dar confiabilidade a um tipo de relato associado à ficção adolescente é o obstáculo dos que se aventuram num gênero ainda novo na imprensa.

O primeiro a usar o termo teria sido, segundo o jornalista Paulo Ramos, o escritor Sid Jacobson (criador de Riquinho), no ano de 2006. Ele o aplicou para descrever o álbum em quadrinhos com o relatório oficial sobre os bastidores do atentado de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas, que criou em parceria com Ernie Colón para a revista eletrônica Slate. A dupla selecionou passagens do The 9/11 Comission Report e enfatizou o suspense narrativo. Experiência on-line antes de ser papel (pela editora Hill and Wang), a novela gráfica reorganiza o relatório numa cronologia linear, que o original não tinha. O trabalho deu lugar a uma sequência, baseada em reportagens sobre a guerra contra o terror, chamada After 9/11: America at War.

Guerras reais

Conflitos de bastidores obscuros, narrados de forma distanciada pelo noticiário, tendem a ser campos férteis à reportagem em HQ. Em 2006, o jornalista Joe Sacco foi enviado pelo britânico The Guardian ao Iraque para produzir o chamado comics journalism. Criou peças como Complacency Kills e Trauma on Loan, com fatos sobre o Iraque, o registro da invasão americana e das torturas nas prisões de Abu Ghraib.

Sacco marcou os anos 90 com uma série de obras de jornalismo gráfico, quase todas disponíveis pela Conrad. Ele é fruto underground, em particular da editora Fantagraphics, que em 1994 lançou Palestine: a nation occupied (pela Conrad, Palestina – Uma nação ocupada, em 2000). Com projetos que potencializaram ao máximo a arte sequencial com procedimentos jornalísticos, passou a ser considerado pioneiro mundial no gênero Jornalismo em quadrinhos, apesar das experiências esparsas anteriores. Em alguns de seus trabalhos, como Área de Segurança Goradze, Sacco perfaz a cadeia produtiva da notícia: apresenta a pauta, insere personagens no relato e descreve ações com economia e funcionalidade.

Seu mérito está, no entanto, na linguagem e na abordagem. Ele usa o formato história em quadrinhos (HQ) para diminuir o distanciamento analítico que a imprensa em geral mantém quando retrata personagens e situações, e faz isso sem reduzir seu relato à confirmação de estereótipos na linha “palestinos = terroristas”. Assumidamente, fisga histórias humanas em meio a eventos de porte, em que as particularidades do indivíduo tendem a evaporar quando ele é transformado em notícia.

Os quadrinhos, costuma dizer Sacco, oferecem uma gama tal de informações visíveis sobre ambientes, paisagens e pessoas que criam um efeito de realidade aos olhos do leitor. Trabalhos como os dele buscam envolver o leitor e materializar personagens, histórias paralelas e cenas nem sempre registradas no trabalho de campo do jornalista, principalmente em situações difíceis, como as de um conflito.

história em quadrinhos (HQs) no jornalismo

Nem todo mundo acredita no potencial das HQs para a apresentação de informações. Rosangela Petta é uma professora de jornalismo que nos anos 90 editou a Goodyear, revista que chegou a fazer uma experiência de crônica em HQ com Luís Gê. Para comemorar os cem anos da Avenida Paulista, em São Paulo, Gê levou quase um ano para concluir uma ficção com dados históricos.

 Na opinião de Petta, não é possível fazer reportagem em história em quadrinhos (HQ), já que ilustrações, enquadramento das cenas e detalhes necessários a uma narrativa em quadrinhos estariam muito além do que o repórter seria capaz de apurar.

– A reportagem clássica lida com o rigor – afirma.

Tal rigor, avalia Petta, seria diferente de usar um quadro ilustrativo de reconstituição de crimes, por exemplo, para apoiar uma reportagem impressa. Não haveria, tampouco, grau de comparação possível entre uma reportagem em HQ e uma fotográfica, pois a precisão no registro da realidade também é outra.

Credibilidade do jornalismo em história em quadrinhos (HQ)

O desafio do jornalismo em quadrinhos, a rigor, não difere do praticado em outra via. Ganha relevo num momento em que é cada vez mais questionado o estatuto de verdade do que a mídia veicula.

Na prática, o jornalismo opera com a dificuldade de a mais isenta notícia dar conta da complexidade do real por ela apresentada. Ninguém demora duas horas para relatar a um amigo, por exemplo, o conteúdo de um filme que viu (melhor seria ver o próprio). Em geral, resumimos os acontecimentos, selecionamos passagens marcantes, no tempo e no espaço que temos. Ao dar uma notícia, há fenômeno similar: a realidade, para ser dita, dança conforme a seleção dos fatos e as necessidades do discurso, o que torna o resultado parcial de nascença. Todo o esforço do jornalista está, por isso, em conferir legitimidade a seu enunciado.

O jornalismo em quadrinhos cria o complicador adicional de usar como base uma linguagem ligada ao entretenimento e à ficção, e que não tem como fornecer o mesmo grau de realismo. Os quadrinhos compensam tal debilidade com uma meticulosa ambientação e alguns mecanismos de linguagem. Os quadrinhos servem para o jornalista alinhavar o enredo, humanizar o relato, recriar situações que não seriam resgatadas de outro jeito, dar contextos e introduzir comentários. Os fatos, no entanto, devem ser recriados com rigor. Caso contrário, não será jornalismo. Será outra coisa. (Colaborou Gabriel Jareta)


Gramática da reportagem história em quadrinhos (HQ)

Indicações de linguagem que fazem tomar como real um gênero ligado à ficção

A construção da realidade no jornalismo em quadrinhos precisa ser garantida de maneira diferente da de outros meios jornalísticos. Para acentuar a confiabilidade no seu testemunho e criar empatia com o público, o repórter que faz jornalismo em HQ conta com alguns recursos de linguagem, como a apresentação breve de um texto que contextualize os quadrinhos, a simulação dos sons ambientes e a transformação do repórter em personagem.

Num livro-reportagem em HQ, como os de Joe Sacco, o repórter é em geral o protagonista dos fatos, não apenas apresenta as histórias que narra. O relato é encarado como autêntico porque o sujeito que o enuncia é real.

Isso só não basta. O jornalista Flávio Pinto Valle Belo defendeu em 2007 a monografia Quadro a quadro: Reflexões sobre o jornalismo em quadrinhos, na UFMG. Ele enumera outras estratégias de reportagens em quadrinhos para “construir sua autoridade”:

  1. O PORMENOR INSIGNIFICANTE – É a descrição meticulosa de cenários e personagens. Imprime realismo ao conjunto se há detalhes, situações de preparação para a ação principal, cenas aparentemente casuais, mas que só poderiam ser obtidas por quem teve contato com elas.
  2. A TEIA DOS FATOS – Uma rede de episódios isolados narrados por personagens é inserida no relato maior, que tudo contextualiza. A informação ordenada em rede (histórias paralelas dentro do relato macro) valida a narrativa, um fato considerado verídico dando legitimidade a outro.
  3. O SISTEMA DE Citações – A ênfase na personalidade de entrevistados dá a sensação de que se trata de personagens genuínos. As fontes viram sujeito da enunciação.

Com tais expedientes, os quadrinhos jornalísticos indicam ao leitor que suas narrativas seriam resultado de genuína apuração dos fatos, e não de mera invenção.

Tipos de narrativas no Jornalismo em quadrinhos

A retratação da realidade assume diferentes formas narrativas no mercado dos quadrinhos, mas apenas uma é jornalística. Na monografia Quadro a quadro: Reflexões sobre o jornalismo em quadrinhos, o jornalista Flávio Pinto Valle Belo separa o joio do trigo no mercado underground ao definir três tipos de quadrinhos da realidade: as narrativas de testemunho, do olhar e as jornalísticas.

Narrativas de testemunho

São relatos autobiográficos com elementos ficcionais, como Gen – Pés Descalços (os efeitos da bomba atômica no Japão), À Sombra das Torres Ausentes (o atentado de 11 de setembro), de Art Spiegelman, e Persépolis, de Marjane Satrapi (a Revolução Islâmica de 1979 aos anos 90).

Narrativas do olhar

Relatos construídos com a experiência do outro. O narrador é destituído de autoridade, e se vê obrigado a adotar uma estratégia textual que o legitime, como em Maus (Prêmio Pulitzer de jornalismo em 1992), que conta a vida sob o nazismo de Vladek Spiegelman, pai do próprio autor, Art Spiegelman; o livro de crônicas O Último Dia no Vietnã, que Will Eisner fez em 2000, e Fax from Sarajevo, de Joe Kubert, que em 1996 relatou a Guerra da Bósnia com base no relato de Ervin Rustemagic, enviado por fax, sua única forma de contato com o mundo ao ficar sitiado pelas tropas sérvias em Sarajevo.

Narrativas jornalísticas

Um olhar de um narrador-repórter sobre a ação do outro. Isso exige estratégias textuais que deem credibilidade ao relato. Só essa categoria seria de fato jornalismo gráfico, um novo formato de linguagem de apresentação de relatos do cotidiano.

Faça você mesmo

Professores podem estimular relatos baseados na averiguação de acontecimentos da realidade

O professor de português ou de jornalismo pode estimular a criação de notícias em HQ, mesmo que ele ou seus alunos não sejam desenhistas natos:

  • O relato, muitas vezes em primeira pessoa, deve mostrar algo que só aquele narrador -jornalista é capaz de apresentar, após rigorosa averiguação dos fatos.
  • Toda reportagem tende a responder a uma pergunta central sobre um fenômeno da realidade. Chamamos de pauta o ato de elaborar melhor essa pergunta e definir um roteiro de como obter as informações para produzir a notícia que será construída.
  • Não invente, investigue. Verifique cada informação mais de uma vez, com fontes (pessoas, documentos, instituições) diferentes, até que tenha confiança só numa versão dos fatos.
  • Organize as informações obtidas na forma de uma história que possa ser contada, com começo, meio e fim.
  • Só é possível fazer isso se você levantar muita informação (pois não vale preencher as lacunas da notícia com invenção). Se faltam dados para recriar ambientes, frases de personagens e ações, investigue mais.
  • Crie um esboço da história, num roteiro quadro a quadro.
  • Deixe claro aquilo que é contado por você e o que é relato de um entrevistado.
  • Se for o caso, inspire seu desenho em fotos de locais e personagens com quem você manteve contato.
  • Capriche no acabamento ao fazer sua arte-final.

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